A democracia representativa se assenta sobre um pilar fundamental: o consentimento informado dos governados. Pressupõe-se que o cidadão, ao depositar seu voto na urna, o faz com base em um conjunto de informações que lhe permite avaliar propostas e candidatos. Por décadas, o grande desafio foi combater a desinformação. Hoje, a ascensão da Inteligência Artificial (IA) generativa eleva essa ameaça a uma nova ordem de grandeza, colocando em xeque não apenas a veracidade de fatos isolados, mas a própria percepção da realidade.
O debate não é mais sobre uma montagem rudimentar ou uma notícia falsa compartilhada em massa. Estamos diante da possibilidade de criação em larga escala de áudios e vídeos sintéticos hiper-realistas — os chamados deepfakes — capazes de atribuir a um candidato declarações que ele jamais fez, de forma quase indistinguível da realidade. O impacto disso no sistema eleitoral é uma ameaça estrutural que nossas instituições começam, tardiamente, a enfrentar.
No âmbito do Legislativo, o debate sobre um marco regulatório para a Inteligência Artificial avança com a cautela característica do processo parlamentar. O Projeto de Lei 2338/2023, em tramitação no Senado Federal, busca estabelecer normas para o desenvolvimento e uso da IA no Brasil. Conforme noticiado pela Agência Senado, a discussão envolve comissões temáticas e audiências públicas que buscam equilibrar a inovação tecnológica com a proteção de direitos fundamentais. O dilema é evidente: como criar uma legislação robusta e ágil o suficiente para acompanhar a velocidade exponencial da tecnologia, sem cercear a liberdade de expressão ou o desenvolvimento tecnológico? A lentidão do tempo legislativo contrasta perigosamente com a rapidez do avanço tecnológico, criando um vácuo regulatório que pode ser explorado por atores mal-intencionados.
Diante dessa lacuna, a Justiça Eleitoral, por meio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tem assumido uma posição de vanguarda. Com base em sua competência para zelar pela normalidade e legitimidade das eleições, o TSE tem editado resoluções para normatizar o uso de novas tecnologias nas campanhas. Como se pode verificar nas notícias e publicações oficiais do próprio Tribunal, já existem regras que proíbem o uso de deepfakes para prejudicar ou favorecer candidaturas e que exigem a rotulagem explícita de todo conteúdo sintético usado em propaganda.
Essa atuação do TSE, embora necessária e tempestiva, é uma resposta reativa a um problema sistêmico. Do ponto de vista da teoria democrática, a solução ideal adviria de um amplo debate social refletido em lei aprovada pelo Congresso Nacional, o órgão representativo por excelência. A judicialização da regulação, ainda que bem-intencionada, sobrecarrega o Judiciário com uma tarefa que, em sua essência, é política e legislativa.
O verdadeiro perigo da IA nas eleições transcende a manipulação de um resultado específico. O fenômeno conhecido como “dividendo do mentiroso” (liar’s dividend) ilustra o dano mais profundo: em um ambiente saturado por fraudes realistas, atores políticos podem desacreditar evidências verdadeiras e comprometedoras, alegando que são deepfakes. O resultado é a erosão terminal da confiança. Se o eleitor não consegue mais acreditar no que vê e ouve, o debate público se torna inviável e a fiscalização dos governantes, impossível.
A defesa da democracia no século XXI exige, portanto, mais do que a simples checagem de fatos. Exige a criação de mecanismos institucionais capazes de garantir a integridade do ecossistema informacional. Proteger a soberania do voto hoje significa regular o código digital com a mesma seriedade com que se regula o código eleitoral.