IA no Judiciário: ferramenta, risco ou fábrica de meme?

A Inteligência Artificial (IA) chegou ao Judiciário brasileiro prometendo uma revolução, uma verdadeira vanguarda da quarta revolução industrial. A promessa é de um futuro no qual processos que levam anos sejam resolvidos em meses, onde a análise de dados ajude a produzir provas mais robustas e a automação de tarefas repetitivas libere juízes e servidores para se concentrarem no que é essencial: o julgamento humano. Mas, entre a promessa e a realidade, um novo e inesperado fenômeno tem surgido: o Judiciário como uma involuntária fábrica de memes.

Recentemente, decisões judiciais ganharam as manchetes não por seu mérito jurídico, mas por seus erros bizarros, todos com uma origem em comum: o uso descuidado de ferramentas de IA generativa, como o ChatGPT. Em um caso notório, um juiz do Tribunal de Justiça de Rondônia utilizou a ferramenta para embasar sua decisão e acabou citando jurisprudências completamente falsas, o que levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a abrir uma investigação. Em outro, um acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso citou um dispositivo do Código Civil que simplesmente não existe.

Esses episódios, embora cômicos para o público leigo, acendem um alerta vermelho sobre os riscos do uso irresponsável da tecnologia. A IA, especialmente em sua forma generativa, não “pensa” ou “sabe” no sentido humano. Ela é um sistema complexo treinado para prever a próxima palavra em uma sequência, baseado em um vasto volume de dados. Quando não encontra uma resposta precisa, ela não admite ignorância; ela “alucina”, ou seja, inventa informações com uma aparência extremamente verossímil. O resultado é o que estamos vendo: uma “jurisprudência de ficção científica” e uma “legislação fantasma” que ameaçam a segurança jurídica.

A situação atual nos remete à introdução de outras tecnologias em nosso cotidiano. Quando o Microsoft Word e outros processadores de texto se popularizaram, houve um temor de que a máquina substituiria o trabalho intelectual de advogados, escritores e secretários. Hoje, essa ideia parece absurda. O Word não substituiu ninguém; tornou-se uma ferramenta indispensável que potencializa a capacidade humana. Ninguém cópia e cola um texto do corretor ortográfico sem antes ler e verificar se a sugestão faz sentido.

A sociedade precisa passar por um processo semelhante de amadurecimento com a Inteligência Artificial. O problema não está na ferramenta em si, mas na falta de supervisão e na delegação cega da responsabilidade. Utilizar a IA para pesquisar, organizar ideias ou automatizar tarefas é um avanço bem-vindo. Contudo, incorporar trechos gerados por ela em uma peça tão crítica quanto uma decisão judicial, sem a devida e rigorosa conferência, é uma falha profissional grave. A tecnologia deve servir como uma ferramenta de apoio, e não como uma substituta do julgamento humano.

Enquanto esse amadurecimento não acontece, os deslizes continuarão a alimentar o anedotário jurídico e as redes sociais. Cada decisão com citação inventada, cada artigo de lei “fantasma”, vira um meme que, apesar de engraçado, corrói um pouco mais a confiança no sistema de justiça.

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