O Supremo Tribunal Federal (STF) escreveu, no final de setembro, um capítulo definitivo em uma das mais longas e sensíveis disputas jurídicas do país: a demarcação de terras indígenas. Ao validar, por um placar de 7 a 4, a constitucionalidade do chamado “marco temporal”, a Corte não apenas estabeleceu um critério objetivo para o reconhecimento de territórios, mas redefiniu o seu próprio relacionamento com o Congresso Nacional e acendeu um sinal de alerta para o Poder Executivo. A decisão, cujos ecos reverberam por todo o país, é um evento de profundas implicações institucionais e estratégicas.
Conforme os resumos do julgamento publicados no portal oficial do STF, a tese vencedora, capitaneada pela corrente mais legalista da Corte, fixou que a demarcação só pode ocorrer em áreas que estavam ocupadas por comunidades indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Os votos da maioria convergiram no argumento de que a segurança jurídica e o direito de propriedade são pilares do Estado de Direito e que a ausência de um critério temporal claro gerava uma instabilidade insustentável no campo.
Os quatro votos divergentes, por outro lado, defenderam a tese do “direito originário”, argumentando que a posse indígena precede a própria formação do Estado brasileiro e não poderia ser limitada por uma data. A profundidade dos debates e a divisão no placar demonstram que esta não foi uma decisão simples, mas o resultado de uma longa maturação de diferentes visões sobre o papel do Judiciário e a interpretação da Constituição.
A reação no Congresso Nacional foi imediata e sintomática da polarização do tema. A Agência Câmara e a Agência Senado registraram manifestações diametralmente opostas. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) comemorou o que classificou como uma “vitória da paz no campo” e da segurança para os produtores rurais. Em nota oficial, a liderança da bancada afirmou que o STF trouxe “previsibilidade” e pôs fim a décadas de conflitos.
Do outro lado do espectro, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas classificou a decisão como um “retrocesso histórico” e prometeu buscar caminhos legislativos para mitigar seus efeitos, embora reconheça a dificuldade de reverter uma tese com força de repercussão geral.
O silêncio do Palácio do Planalto, notado pela Agência Brasil nos dias que se seguiram, é estratégico. O governo se vê em uma posição delicada: de um lado, a necessidade de fazer cumprir uma decisão da Suprema Corte; de outro, o desgaste com sua base social e com os movimentos indigenistas. A gestão da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a política ambiental do Executivo enfrentarão, a partir de agora, um novo e desafiador paradigma jurídico.
O quadro geral indica que, ao arbitrar um conflito que o Legislativo não conseguiu pacificar, o STF atraiu para si uma imensa responsabilidade. A decisão sobre o marco temporal encerra uma disputa jurídica, mas inaugura uma nova fase da disputa política. A pacificação prometida por um lado e o retrocesso alegado por outro convergirão no Congresso, onde as pressões sobre o Executivo para a efetiva implementação da tese definirão os contornos da política indigenista e agrária do Brasil para a próxima década.