Longe do ninho

A social-democracia brasileira vive uma diáspora. Dispersou-se entre legendas, nichos e silêncios, enquanto o velho partido que a abrigou perdeu vigor e norte. Não foi só erro tático; foi abdicar do centro virtuoso entre liberdade econômica, justiça social e instituições fortes. Ao mesmo tempo, o Brasil seguiu adiante — nem sempre em linha reta — e hoje encara um desafio que vai além da disputa eleitoral: como conter a radicalização que corrói o espaço público sem capitular ao cinismo?

A boa notícia: apesar dos solavancos, o país continua democrático. O Supremo Tribunal Federal julgou, nesta semana, o núcleo principal dos fatos de 8 de janeiro de 2023, com sessões públicas, transmissão ao vivo e votos longos, técnicos e divergentes — como deve ser em cortes constitucionais maduras. Até a noite de 10 de setembro de 2025, o ministro Luiz Fux leu voto dissidente, enfrentando questões de competência e devido processo. Concluiu a leitura pouco depois das 21 horas, após 13 horas ininterruptas, com total liberdade e serenidade. É um sinal de saúde institucional ver ministros discordarem com fundamentação densa, sob escrutínio público.

Também é verdade que o julgamento se desenrola sob pressão externa. Nos últimos meses, os Estados Unidos adotaram sanções contra ministros do STF e medidas comerciais que elevaram a temperatura diplomática — movimentos que, goste-se ou não, compõem o pano de fundo e reforçam a sensação de cerco político-midiático em torno do processo. O fato alimenta narrativas, mas não substitui a análise jurídica: cabe aos autos e aos votos — não aos humores internacionais — decidir o destino penal de réus e a mensagem institucional que ficará para a história.

Se queremos virar a página da radicalização, precisamos de três compromissos práticos.

1) Casas de debate sadio. O Brasil carece de espaços que reabilitem a conversa civilizada. Isso implica notícia clara (fatos antes de adjetivos), pluralismo (contraditório real, não caricatura) e métricas de integridade para plataformas digitais e redações: corrigibilidade pública de erros, transparência de fontes, separação nítida entre reportagem e opinião. Sem isso, viralizam slogans e morre a política.

2) Decisão democrática onde for necessário — e eficiência onde for devido. Democracia não é sinônimo de assembleísmo eterno. É saber quando deliberar (orçamento, prioridades coletivas) e quando executar (gestão, entrega de serviços). Social-democracia não é gastar mais; é gastar melhor: metas públicas, avaliação de impacto, auditoria aberta de contratos e aversão explícita a captura regulatória.

3) Respeito ao contribuinte e ao privado como regra. O Estado existe para proteger direitos, regular com parcimônia, investir onde o mercado não chega e jamais confundir interesse público com aparelhamento. Respeitar o privado não é privatizar tudo: é exigir segurança jurídica, previsibilidade, contratos que não mudam ao sabor do ciclo eleitoral e um ambiente de negócios que premie quem inova e cumpre.

A partir desses três pilares, a social-democracia pode voltar a oferecer propostas — não apenas memórias.

  • Economia: responsabilidade fiscal com foco em produtividade (simplificação tributária de verdade no consumo e na folha), de-burocratização radical para pequenas empresas e política industrial cirúrgica, orientada a missões (saneamento, descarbonização, saúde digital) com avaliação independente de resultados.
  • Trabalho e renda: qualificação contínua (voucher de requalificação), créditos de aprendizado para jovens e transição justa para setores carbono-intensivos — sem prometer “empregos verdes” por decreto.
  • Segurança e justiça: metas de redução de homicídios com pactos federativos, integração de dados e controle externo real da atividade policial, ao lado de um Judiciário que preste contas com indicadores de duração razoável do processo e não desrespeite o teto salarial de seus ministros como regra.
  • Educação: foco obsessivo em alfabetização na idade certa, expansão de escolas em tempo integral e política nacional de tutoria para recuperar aprendizagem pós-pandemia — com financiamento atrelado a resultados pedagógicos, não a discursos fáceis em novos tempos de inteligência artificial.
  • Ambiente e cidades: prioridade para saneamento básico, mobilidade limpa e adaptação climática — sem greenwashing orçamentário.

E quanto ao velho PSDB? Formará massa crítica para conduzir o processo reequilíbrio ao centro? O tucano pode voltar a cantar, mas não por decreto. Legendas sobrevivem quando reconhecem erros, abrem processo de escuta e devolvem voz à militância. A diáspora social-democrata pede ponte, não pureza: coalizões temáticas, frentes por integridade pública, defesa do processo eleitoral e compromisso explícito contra a radicalização. Não é renúncia a convicções; é recusar o conforto da tribo.

O julgamento em curso — com votos firmes pela condenação, como os de Alexandre de Moraes e Flávio Dino, e agora uma dissidência extensa de Fux — é testamento de um país que ainda discute no mérito. A fotografia pode nos dividir; o filme, se mantivermos as regras do jogo, nos educa. Ao final, a mensagem mais potente que o STF pode emitir não é a vitória de A ou B, mas a reafirmação de que ninguém está acima da lei e que a lei não se curva à turba nem à pressão estrangeira. Como o centrão reagirá?

Chamo de Diáspora não a fuga, mas o movimento: espalhar sementes de uma social-democracia renovada — fiscalmente séria, socialmente ambiciosa, institucionalmente humilde. O Brasil merece essa esperança. E ela começa não com heróis providenciais, mas com novos ideais.

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